Valéria Poubell, professora alfabetizadora, In Fórum de Professores
Pesquisadores: “O fracasso escolar como forma de exclusão social
dos alunos das classes sociais menos favorecidas do nosso país”(2006)
A interpretação de sons, ainda dentro do útero; de imagens, a do rosto da nossa mãe no momento em que nos deixamos ver neste mundo; de gestos, toques, olhares e mais lá na frente, palavras e imagens mais complexas, a do mundo a nossa volta, tudo isso faz parte da nossa aprendizagem desde o nosso nascimento.
Todo processo de aprendizagem dos indivíduos é mediado pela escola no momento que entramos nela. E tudo aquilo que aprendemos ou não, anteriormente, será potencializado positiva ou negativamente. Neste cenário – de processos bem ou mal sucedidos até então – se apresentará a leitura e a escrita. Paulo Freire (1986) já nos disse que ler o mundo precede ler as palavras do mundo. Eu diria que escrever as palavras do mundo é resultado da escrita da nossa própria história de vida, que escrevemos com ou sem uma letra sequer, se considerarmos as culturas ágrafas existentes.
Os nossos traços de identidade, intensamente impregnados das nossas histórias de vida, merecem toda atenção nos processos de aprendizagem da leitura e da escrita do mundo. Sabe-se que ainda hoje estes são visivelmente desprezados pela escola. Muito mais que discutir a definição ou escolher entre a alfabetização e o letramento é importante capacitar as pessoas, sejam crianças, jovens ou adultos, para a leitura e a escrita eficiente no mundo. Mas como aproximar eficientemente os sujeitos dos conteúdos de aprendizagem?
Ler e escrever vai muito além de alfabetizar-se. Ler significa “ler o mundo” sim, e através da leitura desse mundo, o indivíduo deve ser capaz de escrever a sua própria história no mundo, perceber o momento de modificar o seu rumo e lançar estratégias eficazes para que a transformação ocorra, utilizando-se da leitura e da escrita como ferramentas para alcançar o seu objetivo. Ler no mundo é perceber a história de vida como uma história que se entrelaça com a história do próprio mundo, onde residem as relações sociais, culturais e econômicas e, portanto, também passiveis de transformação.
Ao nascerem, as pessoas inscrevem-se na história do seu país que, por sua vez, compõe a história do mundo, assumindo um tempo só seu num mundo perverso em suas relações sociais e produções de conhecimento. E estes mesmos indivíduos, matriculados numa escola, só serão capazes de se transformar e mudar o seu meio social se forem instrumentalizados de maneira sólida, através de um currículo organizado de acordo com as suas reais necessidades.
A valorização dessas histórias e dos seus entrelaces, precisa ser resgatada pela escola que pretende promover a leitura e a escrita de forma eficiente – a leitura para o mundo. Para que aprendemos a ler se esta leitura não nos permite interpretar as relações que se estabelecem no mundo atual? Quantos de nós somos capazes de entender uma instrução dada somente lendo essa instrução? Nós, professores, provavelmente vamos precisar de duas ou três voltas ao texto. E nossos alunos? Que competência estamos desenvolvendo se a maioria não consegue interpretar uma frase instrutiva, ou um texto simples?
Estamos presos ainda na transmissão de regras ortográficas e normas gramaticais - que tem a importância necessária ate o ponto que nos fazemos entender pelo outro – e nos esquecemos que o “Word” faz isso por nós! E não venha dizer “– e se nosso computador quebrar, como vamos nos virar?” Te digo: sempre há uma Lan House por perto e os nossos alunos sabem bem disso. Alfabetizar é ensinar a utilizar o Word, pois ele está no mundo, no mundo das relações sociais possibilitando que o indivíduo escreva a sua história de vida através dele, ou outro qualquer que o substitua.
E mesmo os nossos alunos das classes menos favorecidas economicamente sabem o identificar a relação de poder que existe entre os que sabem utilizar o computador como ferramenta para enfrentar os desafios do mundo atual e os que sequer sabem ligá-lo. Famílias, alunos e sociedade, todos sabem o valor que tem um e-mail, bem contextualizado e fundamentado, enviado como reclamação por um direito não atendido ou violado, ou como agradecimento pelas melhorias na comunidade em que vive. Este é o legado mais valioso da escola para os seus alunos: a leitura e a escrita da vida para a vida, do mundo para o mundo.
Aprender a ler e escrever tem que ser natural como ser concebido e vir ao mundo. E tanto mais o será se essa aprendizagem estiver em consonância com nossas histórias de vida, distanciada das repetições infundadas, das transmissões sem significantes e significados. É claro que não estamos sós no mundo. E que compartilhar histórias é tão importante quanto viver e relacionar-se com todas as formas de interação social, cultural e econômica. Mas também, e principalmente, opinar, seja através da linguagem oral ou escrita, sobre essas histórias. E a partir da reflexão critica promover mudanças significativas, seja na própria história, ou nas histórias coletivas.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 4 ed. Paz e Terra, 1986.
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